Competências em línguas estrangeiras, boa infra-estrutura
tecnológica, salários baixos, desempregados em desespero. Os
Governos têm feito um bom trabalho, é melhor do que a Índia ou o
Norte de África, consideram as grandes multinacionais dos call
centers. E estão a vir para cá. A crise é “uma oportunidade
extraordinária”, dizem os representantes do sector, e os call
centers podem salvar a economia portuguesa.
Parece uma imagem do futuro. O edifício é em betão e vidro, design
leve e tons claros, com vista para o Tejo e o Oceanário, que fica mesmo
em frente. Nos auscultadores, Maria ouve o bip de uma chamada
interna. “Posso saber porque está de pé?” É a voz de uma das “team
leaders”, que tem mais ou menos a idade da sua filha. “Eu já não disse
que não quero ninguém de pé?”
Maria, segundo o relato que fez ao PÚBLICO,
estava no seu posto, no call center da Teleperformance, há várias
horas. Como o sistema informático tinha caído, e era preciso esperar
uns minutos para que recomeçasse, tinha-se levantado para esticar as
pernas.
“Não pode estar de pé. É do regulamento”.
“Eu conheço o regulamento, mas preciso de levantar-me por um minuto”, responde Maria.
“Cala a boca”.
“Não podes tratar-me assim, sou um ser humano”.
“Se não estás satisfeita, a porta da rua é ali”.
O edifício está divido em salas, cada uma dedicada a um
“projecto”, com centenas de operadores sentados em mesas iguais,
com um terminal de computador e auscultadores. No refeitório,
todo branco e onde as refeições, subsidiadas, custam 2,5 euros,
ouve-se falar várias línguas. Grande parte dos trabalhadores que
circulam, dali para os seus locais de trabalho, ou para a porta de
saída, para fumar, fazendo passar os seus cartões de acesso pelos
torniquetes, são estrangeiros. Quase todos muito jovens.
O ambiente não é de campo de concentração. Nem sequer de linha de
montagem industrial. Ninguém corre, ninguém levanta a voz. Há uma
placidez cordata, quase doce, pelo menos à superfície. Na entrevista
que concedeu ao PÚBLICO, o CEO
da Teleperformance, João Cardoso, refere repetidamente as várias
distinções que a empresa tem obtido como Melhor Lugar para
Trabalhar, atribuídos pelo Great Place to Work Institute, ou a
revista Exame.
Há menos de dez anos, a multinacional francesa Teleperformance
tinha em Portugal 200 trabalhadores. Hoje tem cerca de 4 mil. Há
dois anos, inaugurou este centro no Parque das Nações, com um
investimento de 3,2 milhões de euros, para 1200 trabalhadores, mas
tem outro nas imediações e um terceiro na Avenida Infante Santo. Aqui
prestam-se serviços de call center, contact center ou outsourcing
para algumas das maiores empresas mundiais. Há, neste edifícios, 24
línguas de trabalho, todas de falantes nativos, com conhecimento
profundo não só da língua, garante o CEO, mas também da cultura do respectivo país.
O edifício da Teleperformance da Expo– Oceanário, com o seu
ambiente uniformizado e asséptico, jovem e poliglota, disciplinado,
eficaz e dócil, garantido por regras austeras, precariedade
contratual, horários intensivos e salários baixos, pode de facto ser a
imagem do futuro. Do futuro em Portugal.
“Quando começámos, em 2005, todos
pensaram que isto era um investimento ilógico”, recorda João
Cardoso, com orgulho nas qualidades de gestão que levaram a empresa a
ser um indiscutível “caso de sucesso”. Mas admite que as condições em
Portugal, para este tipo de negócio, são favoráveis. O mérito da
Teleperformance foi tê-lo percebido mais cedo. O seu êxito, hoje,
acaba por tornar o ambiente ainda mais propício para o boom do
sector. É a prova de que é possível e de que funciona bem. Outras
multinacionais de call center e outsourcing estão a olhar para
Portugal como o lugar perfeito para instalar os seus serviços.
Quando se pensa em call centers gigantescos, outsourcing de
serviços de informática e helpdesk, pensa-se geralmente na Índia,
China, Egipto ou Filipinas. São países convenientes, porque
apresentam “estruturas de custos” muito favoráveis, ou seja, há
pessoas que trabalham com razoável competência por salários
miseráveis. Mas a conjuntura está a mudar.
Por um lado, porque os salários tendem a aumentar nesses países do
outsourcing tradicional, à medida que, por serem tão solicitados,
vão criando know-how e especialização. E ao mesmo tempo há países
onde os salários estão a baixar. Por outro lado, há outro tipo de
vantagens que começam a ser importantes para algumas empresas, como
a competência linguística, a proximidade geográfica e
cultural, a infra-estrutura tecnológica e de comunicações, a
estabilidade política e social.
É neste contexto que Portugal surge neste momento como um destino
apetecível para as multinacionais do outsourcing. “Há um conjunto
de indicadores muito favoráveis”, diz ao PÚBLICO
Guilherme Ramos Pereira, secretário-geral da Associação Portugal
Outsourcing, que integra algumas das maiores empresas do sector.
“Segundo vários estudos, em nenhum dos indicadores estamos em número
1, mas estamos muito bem posicionados em vários indicadores
importantes em simultâneo”.
O segredo parece ser esse: um bom cocktail formado por salários
baixos, competências linguísticas, boa estrutura tecnológica,
boa localização geográfica. “O Governo Sócrates fez um grande
investimento em tecnologias de informação e redes
comunicacionais. A nossa rede de fibra, por exemplo, praticamente
não tem concorrentes no mundo inteiro. O Governo Sócrates deixou um
bom legado nesse capítulo”, explica Ramos Pereira.
A situação parece poder resumir-se assim: um país pobre com uma boa
rede de fibra. E talvez esta seja a fórmula suficiente para atrair os
grandes call centers mundiais. No trabalho exaustivo de lobbying
internacional que a Associação Portugal Outsourcing está a
fazer, em cooperação com o AICEP, é mais ou
menos esta a ideia que se passa. Com alguns bónus. Uma “força de
trabalho talentosa” é outra característica apontada nos folhetes
que imprimiram. “Acessibilidade mundial” é outra. “Estilo de
vida” também é considerado importante, com referência explícita
às praias, aos 250 dias de sol por ano e à culinária. É obviamente
valorizada a “infra-estrutura de telecomunicações e de
tecnologias de informação” e, last but not least, o “competitivo
custo do trabalho” e ainda a segurança e estabilidade do país.
Há, da parte de muitas grandes empresas, uma tendência para o
re-shoring, explica o secretário geral da Associação. Significa isto
apostar no near-shoring, em detrimento do off-shoring. Começaram a ser
evidentes os problemas de ter um serviço de outsourcing na Índia,
por exemplo, no caso de uma empresa baseada na Europa. “Se surge uma
questão qualquer, um gestor não apanha rapidamente um avião para a
Índia, para ir discuti-la com um coordenador local”.
Além disso, há a questão cultural. Um europeu tem uma linguagem e
forma de pensar mais fáceis e eficazes para outros europeus. A
questão linguística foi um factor vantajoso, por exemplo, para a
Índia, onde o Inglês é língua oficial. Mas hoje é cada vez mais fácil
encontrar, em qualquer país, quem fale Inglês.
Em Portugal, por outro lado, há muitos cidadãos fluentes em
francês e alemão, devido aos laços criados pela emigração desde os
anos 60 e 70. Para além disso, é fácil atrair falantes de todas as
línguas. “Se Portugal é um país atractivo para fazer férias,
também, pelos mesmos motivos, é fácil convencer estrangeiros a virem
para cá trabalhar”, diz João Cardoso, da Teleperformance. Há na
empresa, explica ele, uma hierarquia salarial consoante a procura de
cada língua e o nível de vida no respectivo país. O salário de um
operador finlandês, por exemplo, pode chegar aos 1400 euros, mais do
dobro do que ganham os operadores portugueses. Mas isso não seria
suficiente. O que convence um finlandês a vir trabalhar para um
call center em Portugal é o clima e o estilo de vida, a
oportunidade de vir conhecer pessoas e ter uma experiência,
enquanto ainda lhe pagam alguma coisa por isso. São estes elementos,
segundo o CEO, que a Teleperformance coloca
nos anúncios de emprego publicados na Finlândia. Ou seja, são
dirigidos a jovens com vontade de fazer umas férias remuneradas, não
a famílias ou profissionais interessados em prosseguir uma
carreira.
Também é esse tipo de mão-de-obra que é suposto os call-centers
empregarem entre os portugueses. Mas devido à actual dificuldade
em encontrar empregos, os call-centers surgem como a única
oportunidade de trabalho para pessoas mais velhas, com famílias e
casas para pagar. Isso contribui para tornar a mão-de-obra mais
competente, ainda que igualmente barata.
Joana tem 44 anos e trabalha há dez em call centers. É licenciada
em Psicologia, mas só consegue trabalho nesta área. Como não tem
alternativas, decidiu levar a sério o seu emprego. Passou por vários
call centers, até chegar a este, de uma empresa japonesa, onde, diz, é
finalmente tratada como um ser humano, apesar de igualmente mal
paga. “Pela primeira vez, alguém me disse um ‘obrigado’ pelo meu
esforço”, conta ela. “Foram dez anos de humilhações, insultos,
desonestidade, roubo”. Na Teleperformance, por exemplo, nunca lhe
disseram “bom dia Joana”, como acontece agora. “Nunca ninguém me tinha
tratado pelo nome”.
Mas Joana tentou sempre ver o lado positivo do trabalho: “Fui
aproveitando a formação que as empresas são obrigadas a dar”. Como
os operadores têm de aprender as especificidades das empresas e
sectores para as quais têm de prestar serviços de informações
(inbound) ou de vendas (outbound), os call-centers dão formação
intensiva.
“Eu talvez conseguisse trabalho na minha
especialidade, de Psicologia Clínica, mas seria também mal paga.
Por isso, para ganhar pouco, prefiro estar numa área onde não invisto
nada. Não preciso de me preocupar, nem de estudar. Eles dão
formação. São eles que investem em mim, não sou eu que invisto neles”.
A empresa onde Joana trabalha presta serviços de helpdesk de
informática. Tem mais de mil operadores nas suas instalações numa das
torres do Colombo, em Lisboa. Joana lida apenas com uma empresa, uma
multinacional petrolífera francesa. “Tenho de dar informações tanto a
um engenheiro que está no deserto a fazer prospecção de petróleo, como
a um executivo num escritório em Paris. E tenho de dar resposta a
absolutamente tudo o que entendam perguntar. É preciso ter essa
capacidade. Para isso é útil a experiência que tenho, e o facto de
ser portuguesa, com a nossa capacidade para desenrascar e resolver
problemas”.
Na opinião de Joana, essa é outra das características que as
multinacionais procuram em Portugal. “Os indianos só fazem o que
lhes mandam. Quando é preciso decidir ou tomar decisões, passam a um
superior”.
Guilherme Ramos Pereira concorda que este binómio — baixos salários
e qualidade dos serviços — é a grande vantagem competitiva de
Portugal para se tornar num dos grandes centros mundiais de
outsourcing e contact-centers. “É uma situação que já existe há
muito, não é de agora”, diz ele. Mas admite que a crise portuguesa
tornou, pelo menos, a sedução mais visível. “A crise não é a razão,
porque as condições já existiam, mas vai permitir alavancar este
esforço. Com a crise, há de facto uma oportunidade excepcional”.
Outro factor não desprezível é a estabilidade. Várias empresas
que tinham o seu outsourcing em países do Norte de África tiveram de
fugir à pressa em consequência da Primavera Árabe. A Blackberry e a
Vodafone são exemplos dados por Ramos Pereira. Tinham todos os seus
serviços concentrados no Cairo. Quando o Presidente Mubarak
decidiu cortar o serviço de internet e telemóvel na cidade, não
conseguiu desorganizar os manifestantes da Praça Tahrir, mas
logrou lançar o pânico na Blackberry em todo o mundo. “Não tinham
alternativas, de repente ficaram paralisados”.
Portugal está portanto num momento ideal para a entrada das
multinacionais do call-center. Os últimos governos dotaram o país
de uma boa infra-estrutura tecnológica, baixaram os salários e
aumentaram o desemprego até ao ponto de terem grande parte da
população desesperada, mas ainda não ao extremo de haver protestos
violentos. Um bom trabalho, na perspectiva das multinacionais.
Para elas é perfeito: um país desenvolvido e miserável ao
mesmo tempo.
Muitas já se instalaram. A Fujitsu, a Xerox, a Microsoft, a Philips, o BNP Paribas, a Apple, tal como as especializadas em outsourcing Telepermormance, SITEL
ou Randstad têm enormes centrais de atendimento em Portugal. A
Associação Portuguesa de Contac Centers calcula que mais de 50
mil pessoas trabalham no sector. Mas a previsão é de que de venham
muitas mais empresas nos tempos próximos.
“Este é o sector de maior crescimento em
Portugal”, diz João Cardoso, acrescentando que as condições são
“excepcionais”. Guilherme Ramos Pereira é ainda mais optimista, acha
que a actividade pode vir a desempenhar um papel fundamental na
economia portuguesa. “Muitas empresas francesas estão a vir para cá,
devido à grande crise em França. E nós estamos a fazer um trabalho
junto de todos os grandes advisers internacionais, para se se crie um
efeito de bola de neve”.
Mas o executivo da Portugal Outsourcing adverte contra o termo
call center e a imagem negativa que lhe está associada. “Não se
trata apenas de call centers, onde estão pessoas simplesmente a
atender telefones, mas de outsourcing, num sentido mais amplo. São
esses serviços mais especializados que virão para Portugal, não o
call center puro e duro”.
O líder da Teleperformance defende a mesma ideia. “As condições que
temos podem ser boas, mas não bastam”. Para sermos competitivos, o
serviço tem de ser muito bom, explica João Cardoso. E precisa que
qualquer outra empresa, em qualquer país, nos pode roubar o lugar e as
vantagens, em pouco tempo. “Nós temos 12 meses de avanço”, diz,
referindo-se à Teleperformance. Esse é o lapso de tempo de que
qualquer empresa precisa para se colocar à altura. O CEO
da Telepormormance não admite que dizer isto é o mesmo que afirmar
que o negócio dos call centers tanto pode crescer exponencialmente,
como desaparecer num ápice, com as empresas a deslocarem-se para
zonas do globo entretanto mais favoráveis, e deitando a perder todo o
benefício para a economia e a criação de emprego.
O seu argumento é que a indústria dos call centers é tão ou tão
pouco segura como qualquer outra, incluindo a industria automóvel
alemã ou relojoeira suíça, que podem ser destronadas a qualquer
momento. É tudo uma questão de boa gestão e de saber aproveitar as
oportunidades.
Portugal não pode perder esta, que lhe está a ser oferecida pela
crise, mas deve investir nos call centers como um sector estratégico e
de qualidade. Se os serviços prestados não forem bons, os clientes
fugirão para a Polónia, Hungria ou Roménia, que também oferecem
boas condições. Ou Marrocos, que sai mais barato.
Para que o sector possa desenvolver-se é preciso compreensão e
apoio da parte do Estado. Deveria haver, na Universidade, uma
licenciatura em Operador de Call Center, defenfe o CEO
da Teleperformance, para que as empresas não tenham de ser elas a
investir em formação. Uma licenciatura do género, lembra João
Cardoso, foi incluída na oferta curricular universitária das
Filipinas, país cujo principal produto de exportação já são os
serviços de call center.
Por outro lado, é necessário que o Governo mantenha a necessária
flexibilidade nas leis laborais. Este é um dos sectores onde isso
é mais importante, admite. “A Espanha tentou regular o sector, e
as empresas fugiram todas para a América Latina”.
Publicado em 21 de Ago de 2013
Paulo Moura ("repórter à solta" - Público)
Paulo Moura ("repórter à solta" - Público)
Quando o povo EXERCE O SEU DIREITO DE VOTO, elege alguém que supostamente vai tomar decisões "A FAVOR" dos interesses do povo, para o qual "TRABALHA"... Será??? Reparemos neste parágrafo...
"Portugal está portanto num momento ideal para a entrada das multinacionais do call-center. Os últimos governos dotaram o país de uma boa infra-estrutura tecnológica, baixaram os salários e aumentaram o desemprego até ao ponto de terem grande parte da população desesperada, mas ainda não ao extremo de haver protestos violentos. Um bom trabalho, na perspectiva das multinacionais. Para elas é perfeito: um país desenvolvido e miserável ao mesmo tempo."
Penso que agora ficou BEM CLARO, para quem é que na realidade os nossos governantes TRABALHAM e porque é que a crise em Portugal "teima" em não ter fim...
E como "não há uma sem duas"...
"Para que o sector possa desenvolver-se é preciso compreensão e apoio da parte do Estado. Deveria haver, na Universidade, uma licenciatura em Operador de Call Center, defenfe o CEO da Teleperformance..."
"LINDA" ideia, não? O que é que poderemos dizer sobre isto? Talvez... COMPLETO ABSURDO???
RECOMENDO VIVAMENTE a leitura deste EXCELENTE artigo a TODOS os portugueses, sem excepção!
Vamos DIVULGAR! Conhecer a verdade é um DIREITO e um DEVER de cada cidadão... :)
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